Poemas escolhidos

Luís de Camões

Mudam-se os tempos

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Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,Muda-se o ser, muda-se a confiança;Todo o mundo é composto de mudança,Tomando sempre novas qualidades.Continuamente vemos novidades,Diferentes em tudo da esperança;Do mal ficam as mágoas na lembrança,E do bem, se algum houve, as saudades.O tempo cobre o chão de verde manto,Que já coberto foi de neve fria,E em mim converte em choro o doce canto.E, afora este mudar-se cada dia,Outra mudança faz de mor espanto:Que não se muda já como soía.

Leonor

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CantigaDescalça vai para a fonteLeonor, pela verdura;vai formosa e não segura.Leva na cabeça o pote,o testo nas mãos de prata,cinta de fina escarlata,sainho de chamalote;traz a vasquinha de cote,mais branca que a neve pura;vai formosa e não segura.Descobre a touca a garganta,cabelos de ouro o trançado,fita de cor de encarnado…tão linda que o mundo espanta!chove nela graça tantaque dá graça à formosura;vai formosa, e não segura.

Mário Cesariny

Em todas as ruas te encontro

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Em todas as ruas te encontroEm todas as ruas te encontroEm todas as ruas te percoconheço tão bem o teu corposonhei tanto a tua figuraque é de olhos fechados que eu andoa limitar a tua alturae bebo a água e sorvo o arque te atravessou a cinturatanto, tão perto, tão realque o meu corpo se transfigurae toca o seu próprio elementonum corpo que já não é seunum rio que desapareceuonde um braço teu me procuraEm todas as ruas te encontroEm todas as ruas te perco

Tranglo

Mário Sá Carneiro

Quase

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QuaseUm pouco mais de sol - eu era brasa,Um pouco mais de azul - eu era além.Para atingir, faltou-me um golpe de asa...Se ao menos eu permanecesse aquém...Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaídoNum grande mar enganador de espuma;E o grande sonho despertado em bruma,O grande sonho - ó dor! - quase vivido...Quase o amor, quase o triunfo e a chama,Quase o princípio e o fim - quase a expansão...Mas na minh'alma tudo se derrama...Entanto nada foi só ilusão!De tudo houve um começo ... e tudo errou...- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,Asa que se enlaçou mas não voou...Momentos de alma que, desbaratei...Templos aonde nunca pus um altar...Rios que perdi sem os levar ao mar...Ânsias que foram mas que não fixei...Se me vagueio, encontro só indícios...Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;E mãos de herói, sem fé, acobardadas,Puseram grades sobre os precipícios...Num ímpeto difuso de quebranto,Tudo encetei e nada possuí...Hoje, de mim, só resta o desencantoDas coisas que beijei mas não vivi...Um pouco mais de sol - e fora brasa,Um pouco mais de azul - e fora além.Para atingir faltou-me um golpe de asa...Se ao menos eu permanecesse aquém...

Pablo Neruda

Sempre

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Sempre Ao contrário de tinão tenho ciúmes.Vem com um homemàs costas,vem com cem homens nos teus cabelos,vem com mil homens entre os seios e os pés,vem como um riocheio de afogadosque encontra o mar furioso,a espuma eterna, o tempo.Trá-los todosaté onde te espero:estaremos sempre sozinhos,estaremos sempre tu e eusozinhos na terrapara começar a vida.

Rudiard Kipling

SE

Sebastião da Gama

Pequeno poema

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Pequeno poemaQuando eu nasci,ficou tudo como estava.Nem homens cortaram veias,nem o Sol escureceu,nem houve Estrelas a mais...Somente,esquecida das dores,a minha Mãe sorriu e agradeceu.Quando eu nasci,não houve nada de novosenão eu.As nuvens não se espantaram,não enlouqueceu ninguém...Pra que o dia fosse enorme,bastavatoda a ternura que olhavanos olhos de minha Mãe...

Meu país desgraçado

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Meu País DesgraçadoMeu país desgraçado!...E no entanto há Sol a cada cantoe não há Mar tão lindo noutro lado.Nem há Céu mais alegre do que o nosso,nem pássaros, nem águas ...Meu país desgraçado!...Por que fatal engano?Que malévolos crimesteus direitos de berço violaram?Meu Povode cabeça pendida, mãos caídas,de olhos sem fé— busca, dentro de ti, fora de ti, aondea causa da miséria se te esconde.E em nome dos direitosque te deram a terra, o Sol, o Mar,fere-a sem dócom o lume do teu antigo olhar.Alevanta-te, Povo!Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,a calada censuraque te reclama filhos mais robustos!Meu Povo anémico e triste,meu Pedro Sem sem forças, sem haveres!— olha a censura muda das mulheres!Vai-te de novo ao Mar!Reganha tuas barcas, tuas forçase o direito de amar e fecundaras que só por Amor te não desprezam!

Sophia M. Breyner Andersen

Porque

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Porque os outros se mascaram mas tu nãoPorque os outros usam a virtudePara comprar o que não tem perdão.Porque os outros têm medo mas tu não.Porque os outros são os túmulos caiadosOnde germina calada a podridão.Porque os outros se calam mas tu não.Porque os outros se compram e se vendemE os seus gestos dão sempre dividendo.Porque os outros são hábeis mas tu não.Porque os outros vão à sombra dos abrigosE tu vais de mãos dadas com os perigos.Porque os outros calculam mas tu não.

Camões e a tença

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Camões e a tença Irás ao Paço. Irás pedir que a tençaSeja paga na data combinadaEste país te mata lentamentePaís que tu chamaste e não respondePaís que tu nomeias e não nasceEm tua perdição se conjuraramCalúnias desamor inveja ardenteE sempre os inimigos sobejaramA quem ousou seu ser inteiramenteE aqueles que invocaste não te viramPorque estavam curvados e dobradosPela paciência cuja mão de cinzaTinha apagado os olhos no seu rostoIrás ao Paço irás pacientementePois não te pedem canto mas paciênciaEste país te mata lentamente

Mar

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Mar De todos os cantos do mundoAmo com um amor mais forte e mais profundoAquela praia extasiada e nua,Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

Vinicius de Morais

Operário em construção

Alexandre O'Neil

Portugal

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PortugalÓ Portugal, se fosses só três sílabas,linda vista para o mar,Minho verde, Algarve de cal,jerico rapando o espinhaço da terra,surdo e miudinho,moinho a braços com um ventotestarudo, mas embolado e, afinal, amigo,se fosses só o sal, o sol, o sul,o ladino pardal,o manso boi coloquial,a rechinante sardinha,a desancada varina,o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,a muda queixa amendoadaduns olhos pestanítidos,se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,o ferrugento cão asmático das praias,o grilo engaiolado, a grila no lábio,o calendário na parede, o emblema na lapela,ó Portugal, se fosses só três sílabasde plástico, que era mais barato!****Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,galo que cante a cores na minha prateleira,alvura arrendada para ó meu devaneio,bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,golpe até ao osso, fome sem entretém,perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,rocim engraxado,feira cabisbaixa,meu remorso,meu remorso de todos nós...

António Gedeão

Lágrima de Preta

David Mourão-Ferreira

E por vezes

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E por vezes as noites duram mesesE por vezes os meses oceanosE por vezes os braços que apertamosnunca mais são os mesmos E por vezesencontramos de nós em poucos meseso que a noite nos fez em muitos anosE por vezes fingimos que lembramosE por vezes lembramos que por vezesao tomarmos o gosto aos oceanossó o sarro das noites não dos meseslá no fundo dos copos encontramosE por vezes sorrimos ou choramosE por vezes por vezes ah por vezesnum segundo se envolam tantos anos.

Escada sem corrimão

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É uma escada em caracole que não tem corrimão.Vai a caminho do SolMas nunca passa do chão.Os degraus, quanto mais altos,Mais estragados estão,Nem sustos nem sobressaltosservem sequer de lição.Quem tem medo não a sobeQuem tem sonhos também não.Há quem chegue a deitar foraO lastro do coração.Sobe-se numa corrida.Corre-se p'rigos em vão.Adivinhaste: é a vidaA escada sem corrimão.

Eugénio de Andrade

Requiem para Piero Pasolini

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Eu pouco sei de ti mas este crimetorna a morte ainda mais insuportável.Era novembro, devia fazer frio, mas tujá nem o ar sentias, o próprio sexoque sempre fora fonte agora apunhalado.Um poeta, mesmo solar como tu, na terraé pouca coisa: uma navalha, o rumorde abril podem matá-lo – amanhece,os primeiros autocarros já passaram,as fábricas abrem os portões, os jornaisanunciam greves, repressão, dois mortos naprimeirapágina, o sangue apodrece o brilharáao sol, se o sol vier, no meio das ervas.O assassino, esse seguirá dia após diaa insultar o amargo coração da vida;no tribunal insinuará que respondera apenasa uma agressão (moral) com outra agressão,como se alguém ignorasse, excepto claroos meretíssimos juízes, que as putas desta espécieconfundem moral com o próprio cu.O roubo chega e sobra excelentíssimos senhorescomo móbil de um crime que os fascistas,e não só os de Salò, não se importariam deassinar.Sea qual for a razão, e muitas há,que o Capital a Igreja e a Políciade mãos dadas estão sempre prontos a justificar,Pier Paolo Pasolini está morto.A farsa, a nojenta farsa, essa continua.

Urgentemente

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URGENTEMENTEÉ urgente o Amor,É urgente um barco no mar.É urgente destruir certas palavrasódio, solidão e crueldade,alguns lamentos,muitas espadas.É urgente inventar alegria,multiplicar os beijos, as searas,é urgente descobrir rosas e riose manhãs claras.Cai o silêncio nos ombros,e a luz impura até doer.É urgente o amor,É urgente permanecer.

Fernando Pessoa

Tabacaria - Alvaro de Campos

AUTOPSICOGRAFIA

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AUTOPSICOGRAFIAO poeta é um fingidor.Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dorA dor que deveras sente.E os que lêem o que escreve,Na dor lida sentem bem,Não as duas que ele teve,Mas só a que eles não têm.E assim nas calhas de rodaGira, a entreter a razão,Esse comboio de cordaQue se chama coração.

Sou um Guardador de Reabanhos - Alberto Caeiro

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Sou um guardador de rebanhos.O rebanho é os meus pensamentosE os meus pensamentos são todos sensações.Penso com os olhos e com os ouvidosE com as mãos e os pésE com o nariz e a boca.Pensar uma flor é vê-la e cheirá-laE comer um fruto é saber-lhe o sentido.Por isso quando num dia de calorMe sinto triste de gozá-lo tanto,E me deito ao comprido na erva,E fecho os olhos quentes,Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,Sei a verdade e sou feliz.

Da Verdade não Quero Mais que a Vida

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Da Verdade não Quero Mais que a Vida Sob a leve tutelaDe deuses descuidosos,Quero gastar as concedidas horasDesta fadada vida.Nada podendo contraO ser que me fizeram,Desejo ao menos que me haja o FadoDado a paz por destino.Da verdade não queroMais que a vida; que os deusesDão vida e não verdade, nem talvezSaibam qual a verdade.

Florbela Espanca

Ser Poeta

Em busca do Amor

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O meu Destino disse-me a chorar:“Pela estrada da Vida vai andando,E, aos que vires passar, interrogandoAcerca do Amor, que hás-de encontrar.”Fui pela estrada a rir e a cantarAs contas do meu sonho desfiando…E a noite e dia, à chuva e ao luar,Fui sempre caminhando e perguntando…Mesmo a um velho eu perguntei: “Velhinho,Viste o Amor acaso em teu caminho?”E o velho estremeceu… olhou…e riu…Agora pela estrada, já cansados,Voltam todos pra trás desanimados…E eu paro a murmurar: “Ninguém o viu!…”

Jorge de Sena

Amo-te muito meu amor

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Amo-te Muito, Meu Amor, e Tanto Amo-te muito, meu amor, e tantoque, ao ter-te, amo-te mais, e mais aindadepois de ter-te, meu amor. Não findacom o próprio amor o amor do teu encanto.Que encanto é o teu? Se continua enquantosofro a traição dos que, viscosos, prendem,por uma paz da guerra a que se vendem,a pura liberdade do meu canto,um cântico da terra e do seu povo,nesta invenção da humanidade inteiraque a cada instante há que inventar de novo,tão quase é coisa ou sucessão que passa...Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.

Carta aos meus filhos sobre o fusilamento de Goya